Crónica de Alexandre Honrado
A Europa numa hora de amnésias
O texto que se segue faz parte de outro, inédito, intitulado Europa, entre a memória e o esquecimento, que aguarda publicação em livro coletivo no qual sou apenas um dos autores. É um pedaço desse livro, mas parece-me mesmo assim interessante esta partilha.
Políticas de memória, memória individual, memória coletiva, memória prótese, amnésia transcultural – são tantos os lados prismáticos da superfície onde se procuram os pontos de referência essencial da cartografia europeia da atualidade, pelo menos no que respeita à memória – individual e coletiva, espontânea ou organizada, material e imaterial, monumental ou anónima – dos seus cidadãos que, em tantos exemplos, paradoxalmente, parece estar arredada das suas capacidades, apetências ou pelo menos das suas prioridades.
Não é de estranhar, somando-se como se somam as experiências traumáticas da sua longa, profícua mas também destruidora, tantas vezes violenta caminhada através dos séculos, que um desejo de amnésia, uma opção pela desmemória, surja como um ato, mesmo que seja inconsciente, de sobrevivência.
Não é de estranhar que se construam portanto próteses, para substituir pedaços arrancados que doem numa caminhada intensa e fratricida, superando o que foi suprimido ou sonegado sem dó nem piedade por acontecimentos funestos e opções no mínimo vergonhosas.
A Europa parece hoje, de certo modo, ter-se esquecido de si, ou pelo menos querer esquecer-se de si, abandonando-se ao jogo do acaso e da sorte, fantasiando regressos ao passado, brandindo distopias como se de novas utopias se tratasse. Vê-se essa opção no virar as costas nos momentos de decisão – cada vez há mais absentismo na hora das escolhas -, na defesa de alternativas populistas, autoritárias e limitadoras das liberdades individuais e coletivas, nos extremismos, nas práticas da violência (que começam dentro de casa, passa pelos recintos desportivos e pelas escolas, acabam na injustiça pública de atentados e chacinas). Parece não ter existido o passado, quando não evocamos o caos das guerras mundiais, da guerra dos Balcãs, das ditaduras europeias, das guerras civis na Europa, o sangue dos genocídios ou a repressão a ocidente e a leste…
Cabe-nos procurar, em cada uma dessas faces de um prisma tão complexo, o rosto que se diluí no espelho da razão, ou melhor, que se esvai como gota que se evapora num mal preparado laboratório de análises.
A pesquisa, inevitavelmente, leva sempre a novas interrogações – é o que tem de mais saudável e, por ventura, será até o percurso mais útil por ser impeditivo de novos esquecimentos. Não há ensaios categóricos quando se procuram as respostas.
Está o Velho Continente condenado ao olvido? Como recordarão os vindouros, europeus ou não, a Europa nossa contemporânea? E, finalmente, a ignorância do que fomos explica a confusão do que somos?
Afinal, o que somos? Individualistas; autocentrados; mecanizados e aptos na ótica do utilizador dos artefactos a que temos acesso; dominadores de pouca cultura geral e pouquíssima cultura específica, mas grandes consumidores espontâneos dos objetos massificados pelas indústrias culturais, objetos esses aceites e absorvidos normalmente de forma informal e sem grande seletividade; pródigos na emissão de juízos de valor, mas modestos na complexidade exigente e fulcral dos processos críticos, reunidos numa União política e económica, mas pouco sabedores da vida interna de cada um dos países membros de uma comunidade: por mais vizinhos que sejamos somos mais sabedores de nós do que dos outros. Oscilamos por isso entre dois polos extremos, o europeísmo e o europessimismo?
Alexandre Honrado
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